VW Kombi “Light” retorna ao palco de Woodstock, 50 anos depois

Reconstruída fielmente pelo mesmo criador do modelo original, "perua mágica" que virou ícone do maior festival de música da história viaja de volta ao cenário de 1969




VW Kombi “Light” retorna ao palco de Woodstock, 50 anos depois

Em agosto de 1969, quase 500 mil pessoas se reuniram sobre o gramado equivalente a dezenas de campos de futebol, dentro de uma fazenda nos arredores de Bethel, no estado de Nova Iorque, Estados Unidos, para ver e ouvir os 32 shows anunciados para o festival Woodstock Music and Art Fair. O que aconteceu ao longo daqueles dias, no entanto, foi muito mais do que um concerto. O encontro se tornou o maior evento de música de todos os tempos, um acontecimento histórico que definiu aquela geração e marcou o fim de uma das mais turbulentas décadas da história contemporânea.

Para celebrar os 50 anos de Woodstock, o Bethel Woods Center for the Arts, um espaço dedicado a manter viva a memória do festival, instalado dentro da fazenda onde ele aconteceu, organizou um novo concerto, porém de proporções bem menores e muito mais controladas. Mesmo assim, milhares de jovens – muitos deles “setentões” remanescentes do evento original – se deslocaram para lá, novamente para ouvir música e celebrar a paz.

A viagem não acabou: Hieroimus entre Grimm (esq.) e Trudy, na celebração aos 50 anos de Woodstock

Entre os que estavam de volta ao local onde tudo aconteceu, uma presença, certamente, foi uma das mais reconhecidas: a VW Kombi Light.  Reconstruída especialmente para os 50 anos do festival pelo mesmo artista plástico Robert Hieronimus, o “Dr. Bob”, autor da pintura psicodélica do modelo de 1969, ela reproduz fielmente as mensagens e desenhos coloridos e esotéricos que tornaram a perua um dos símbolos de Woodstock.

A princípio, a ideia era restaurar a Light original. No entanto, da mesma forma que o “Verão do Amor” (como ficou conhecida aquela estação agitada), uma das mais famosas Kombi da história teve um momento ao sol, para depois desaparecer em meio à ressaca dos anos de 1970. Mas graças a Hieronimus e ao documentarista canadense John Wesley Chisolm, com seu apurado senso de detetive, a perua icônica foi reencarnada em um modelo idêntico e caiu na estrada outra vez.

VW Kombi Light

Após meses de restauração, a nova Light estreou em fevereiro deste ano, em um encontro de veículos antigos em Orange County, na Califórnia. Desde lá, ela fez uma peregrinação através dos Estados Unidos, programada para terminar no festival em celebração aos 50 anos de Woodstock, realizado no último final de semana, na mesma fazenda do concerto original. Mas até chegar lá, muito suor e asfalto ficaram para trás.

O dono da ideia: o músico Bob Grimm na Kombi Light, poucos dias antes de Woodstock

O ano era 1968 quando Robert Hieronimus, então aos 26 anos de idade, foi contratado para pintar uma “perua mágica” para Bob Grimm, músico pertencente à banda Light (luz), radicado em Baltimore, nos Estados Unidos. Aceito o desafio, a tal perua, uma Volkswagen Kombi Tipo 2, ano 1963, com 11 janelas e parabrisa dividido ao meio – chamada de “corujinha” aqui no Brasil -, foi inteiramente decorada no estilo esotérico. O grupo pretendia sair para uma excursão, com destino ao Woodstock Music and Art Fair, qeu aconteceria no ano seguinte.

“Dr. Bob” levou seis meses para criar o conceito e completar a Kombi Light, que foi estampada com motivos cósmicos, símbolos de arquétipos e palavras em dialetos antigos. Ao final do trabalho, ele recebeu mil dólares – “uma fortuna naquela época”, comemora o artista, meio século depois –, dinheiro utilizado, em parte, para comprar um ingresso para Woodstock. No entanto, quando ouviu falar que 50 mil pessoas já preparavam suas mochilas com destino ao festival, o Hieronimus achou por bem desistir da viagem.

Hieronimus, o Dr. Bob dando os últimos retoques na “perua mágica” original, em 1969

Mal sabia ele, no entanto, que esse público seria multiplicado por quase dez vezes e, menos ainda, que a Kombi 1963 pintada por ele se tornaria um símbolo do mais importante festival de todos os tempos.

Hieronimus disse que a Kombi simbolizou o “Verão do Amor” como nenhum outro veículo. “A perua é realmente como uma pessoa única, em um planeta único”, definiu o pintor, que também é simbolista. “Todos temos uma centelha divina do criador cósmico dentro de nós”, afirmou.

Com motor de 40 cv de potência, refrigerado a ar, a “corujinha” não foi projetada para velocidade. Mas tinha baixa manutenção e fácil de reparar, além de poder transportar muita gente, o que faz dela ideal para as viagens.

“Ela era realmente um carro para pessoas livres”, diz o artista. “Ela representava a liberdade.”  E, assim, a Kombi ganhou a fama de Hippie Bus, ou perua hippie, perfeita para quem gosta de viajar acompanhado, sem pressa e para qualquer destino.

VW Kombi Light de 2019 mantém nos mínimos detalhes a pintura do modelo original

Bob Grimm, o músico que contratou Hieronimus, lembra-se de embarcar na Kombi junto com Rick Peters, baterista da banda Light, Trudy Morgal, vocalista, e Lynn, sua namorada na época. Eles chegaram a Bathel no dia anterior aos primeiros shows e só então descobriram que os carros estavam sendo obrigados a retornar para estacionarem ao longo da estrada.

Quando um dos policiais disse que eles deveriam descer e continuar caminhando, Grimm pensou rápido e disse: “Estamos levando essa Kombi para a exposição de arte.” E foram autorizados a passar. Mas, na verdade, não haveria qualquer exposição de arte.

Kombi Light serviu como refúgio para artistas e anônimos em Woodstock

A Kombi foi estacionada perto da estrada de terra de três pistas, do lado esquerdo do palco. Como a chuva e a lama não deram trégua nos dias seguintes, a Kombi serviria como um valioso abrigo para a banda e muitos outros. Até mesmo diversos músicos famosos disseram ter se amontoado em seu interior, preparando-se para as apresentações.

No primeiro dia, Grimm e seus amigos tiveram uma vista privilegiada dos shows através do parabrisa bipartido. Nos outros dois, porém, foram obrigados a subir no teto do carro, onde Trudy e Ricky estava quando o fotógrafo da agência de notícias Associated Press captou a imagem abaixo, popularizada no mundo todo:

Fama: captada pela agência Associated Press em Woodstock, imagem da Kombi Light rodou o mundo

Salto no tempo. Já era quase 2017, com o aniversário de 50 anos de Woodstock aproximando, quando Hieronimus e o documentarista canadense John Chisolm tiveram a ideia de trazer a Kombi Light de volta à vida. Mas havia um problema: eles não tinham a menor ideia de onde ela poderia estar.

Com a ajuda de pesquisadores, detetives e, por iniciativa de Hieronimus, também de um paranormal, a dupla se pôs em busca da Kombi desaparecida ao longo de seis meses. Graças ao apoio da Volkswagen dos EUA e dos 90 mil dólares arrecadados por meio da vaquinha virtual promovida pela maior comunidade VW daquele país, eles puderam custear e registrar em vídeos a longa empreitada.

“Nós buscamos desde o norte de New Jersey até o sul do Arkansas”, disse Crisholm. Eles pararam em cada ferro-velho de carros da Volks e falaram com todos os mecânicos que puderam, esperando encontrar algum rastro da Light ao longo do caminho. Para decepção de ambos, todas as pistas eram sempre muito frias.

VW Kombi 1963 que serviu de base para a réplica da Light

Foi quando, no início de 2018, com o prazo cada vez mais curto, os caçadores da Kombi perdida decidiram mudar o plano: ao invés de insistir no modelo original, o jeiros seria criar uma réplica perfeita. No entanto, a busca continuava, agora, por um modelo idêntico ao da Light. Após um início sem muito sucesso, eles encontraram um exemplar de 11 janelas, ano 1963, idêntica à original, mas que já não rodava há muito tempo.

Finalmente, com uma Kombi “gêmea” nas mãos, eles recrutaram por todo o país equipes de especialistas em restauração para ajudá-los a fazer da missão uma realidade, muitos deles dedicando voluntariamente tempo e trabalho a favor do objetivo em comum.

VW Kombi Light

O conjunto de motor, transmissão e eixo traseiro do veículo com 55 anos de estrada foi recondicionado em uma oficina na Califórnia. A carroceria surrada teve o assoalho, interior e painéis externos todos substituídos.

Em certo momento, para agilizar a restauração, foram montados andaimes de 2,40 m de altura em cada lado do veículo, permitindo que as equipes de funilaria e de mecânica trabalhassem ao mesmo tempo.

No interior, os nomes de todos os artistas que participaram da pintura mais do que personalizada

Pronta para a pintura, a Kombi foi levada de guincho até Maryland, onde Hieronimus e mais cinco pintores recriaram a decoração esotérica em apenas seis semanas. O artista plástico exigiu que os colaboradores aprendessem sobre o simbolismo aplicado ao design da Light, por dentro e por fora, com anotações e leituras.

“De cada lado da Kombi há uma história – ou muitas histórias – e todas elas convergem para a união, trabalho conjunto e elevação da consciência, que é o verdadeiro significado da ‘Light’”, justificou Hieronimus.

Depois de mais uma viagem até a Flórida, sul dos Estados Unidos, onde foram feitos os acabamentos internos e externos, Hieronimus e Crisholm apresentaram pela primeira vez a reencarnação da Kombi Light no início de fevereiro deste ano, no encontro de colecionadores do modelo, na Califórnia.

No meio do ano, Crisholm lançou seu documentário, intitulado A Bus Called Light (Uma perua chamada Luz). Veja trailer:

O veículo psicodélico percorreu todo o país, até chegar ao Bethel Woods Music and Culture Festival. “A perua só traz alegria e sorrisos às pessoas. Todo mundo quis entrar nela ou ficar perto ao longo da viagem”, disse Crisholm. “Seja qual for o seu sonho, seja qual for o lugar aonde queira ir, ela te levará até lá.”

De volta: 50 anos depois, novamente a imagem da Kombi Light em frente ao gramado de Woodstock

E, finalmente, meio século depois do “Verão do Amor”, a nova Kombi Light retornou o solo sagrado de Woodstock. E, desta vez, trazendo a bordo o criador de sua aura esotérica. A perua foi estacionada junto à área utilizada para o pouso de helicópteros durante o concerto original, de onde era possível avistar o palco.

Para celebrar o 50º aniversário do festival neste fim de semana, milhares de visitantes se dirigiram para o Bethel Woods Center for the Arts. Atualmente, o anfiteatro tem capacidade para apenas 15 mil pessoas e esteve completamente lotado nos quatro dias de concertos, a exemplo de 1969, guardadas as proporções.

Kombi de Grimm e Hieronimus (esq.) virou ponto de peregrinação no evento de 50 anos

A programação do evento comemorativo contou com a participação de Arlo Guthrie, The Edgar Winter Band and Blood, John Fogerty e Santana, que se apresentaram em 1969, além de Sweat & Tears, Grace Potter, Tedeschi Trucks Band e de Ringo Starr, ex-baterista dos Beatles, entre outros.

Paralelamente à música, muitos foram ao evento motivados pela nostalgia de caminhar pelo campo do festival original e visitar o museu no Bethel Woods, onde os visitantes fazem uma viagem no tempo com a exibição de vídeos e exposição de memorabília (artigos da época) de Woodstock. E, claro, do lado de fora, a Kombi Light foi uma das atrações mais admiradas e fotografadas do evento.

A edição oficial do Woodstock 50 foi cancelada no meio deste ano, após os planos de um grande evento de aniversário terem fracassado por três vezes, em Watkins Glen, também no estado de Nova Iorque, depois em Vernon e em Maryland.

Cartaz do festival e o casal abraçado: outros símbolos dos três dias de música, paz e amor

O Woodstock Music and Art Fair de 1969 é considerado um dos maiores acontecimentos de todos os tempos e, talvez, o momento mais importante da música na história recente.

Inicialmente, o festival estava previsto para acontecer entre 15 e 17 de agosto (sexta, sábado e domingo). Mas as chuvas intermitentes ao longo de todo o fim de semana aumentaram no último dia de concertos, obrigando a organização a estender o evento até a segunda-feira (18).

Woodstock Music and Art Fair, agosto de 1969

Foi quando aconteceu a épica apresentação de Jimi Hendrix, assistida por uma plateia reduzida a 25 mil bravos remanescentes, que não arredaram o pé da lama até que a última nota de guitarra ecoasse por aqueles campos encharcados.

Jimi Hendrix, final apoteótico para o maior festival de todos os tempos

Realizado poucas semanas após a chegada do homem à lua, o festival de Woodstock teve como pano de fundo os Estados Unidos em conflito com relação às políticas sexuais, direitos civis e à Guerra do Vietnã. Um espírito de país em transição – prestes a ser tomado por uma geração com valores e ideais muito distantes – envolveu totalmente o evento, chamado pelos seus idealizadores como Uma Exposição Aquariana: três dias de paz e música.

VW Kombi Light

Meio século depois, cumprida a missão de trazer a Kombi Light de volta à vida, Hieronimus e Chisolm esperam encontrar um lar permanente para a senhora “hiponga”, onde possa servir como uma lembrança viva do “Verão do Amor”, sem se perder pela estrada do tempo.

GALERIA WOODSTOCK 1969

Fontes: VW EUA, Woodstock Bus e Syracuse I Tradução e edição: Fábio Ometto i Imagens: Divulgação, reprodução e redes sociais

Última atualização em 19.08.2021




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