Se você não conseguia cravar qual era o automóvel mais caro de todos os tempos, saiba que agora ele tem nome e sobrenome: é o Mercedes-Benz 300 SLR Uhlenhaut Coupé. O modelo produzido em 1955 foi arrematado em leilão por um colecionador privado, no início deste mês, pelo valor recorde de 135 milhões de euros – ou, R$ 692,5 mi, traduzido para a nossa moeda -, se tornando o carro mais valioso já negociado.
E não é para menos. Considerado um ícone da história automotiva, o modelo é uma raridade absoluta, do qual foram construídos apenas dois protótipos. Conservado como uma joia em suas características de fábrica, o exemplar fazia parte da coleção de veículos não públicos pertencentes à Mercedes-Benz Classic, composta por mais de 1.100 veículos produzidos desde a invenção do automóvel, em 1886. O segundo 300 SLR Coupé original permanece em poder da empresa e continuará a ser exibido no Museu Mercedes-Benz, em Stuttgart, na Alemanha.
O sobrenome adicionado à identificação do veículo é uma homenagem ao seu criador e engenheiro-chefe, Rudolf Uhlenhaut (1906-1989), nascido em Londres, mas radicado na Alemanha desde a adolescência, país em que se graduou em engenharia mecânica e logo foi contratado pela Mercedes-Benz, onde encontrou um vasto campo para revelar sua genialidade em projetos e no design automotivos.
À época da criação do 300 SLR Coupé – sigla de Super Leicht Rennsport, ou “super leve de corrida”, em tradução livre –, Uhlenhaut já era uma figura destacada dentro do organograma da Mercedes, ocupando o cargo de engenheiro-chefe da divisão de carros de passeio e de competições, refletindo o trabalho de mais de duas décadas dentro da empresa.
Em seu currículo, já constavam o desenvolvimento do W 125, que levou o piloto alemão Rudolf Caracciola ao título da temporada de Grand Prix de 1937, e o seu sucessor, o W 154, com motor de 12 cilindros e que dominou as pistas nos anos de 1938 e 1939. Então a 2ª Guerra eclodiu, colocando um fim abrupto ao envolvimento da fabricante de automóveis no automobilismo.
No início da década de 1950, porém, a Mercedes decidiu voltar às competições, delegando a Uhlenhaut o comando da missão – o que se mostrou uma medida acertada e vencedora. Em 1952, o engenheiro assinou o projeto do SL 300, com suas fascinantes portas “asas de gaivota”, que alçou os voos mais altos nas corridas de longa duração daquela temporada, com quatro vitórias em cinco corridas – incluindo a 24 Horas de Le Mans, onde também ficou com a segunda colocação, o Grande Prêmio de Nürburgring e a Carrera Panamericana, no México, na qual também foi o vice-campeão.
E após a Mercedes ser convencida por um distribuidor estado-unidense a produzi-lo em série para as ruas, se tornou, com o passar dos anos, um dos modelos mais cobiçados do mundo, até hoje, e eleito o “carro esportivo do século” em 1999.
Na sequência, Uhlenhaut foi o responsável pelo desenvolvimento do Silver Arrow (Flecha de Prata) W 196 R, projetado, inicialmente, em um exuberante e aerodinâmico desenho streamline, com carroceria integral, mas derivada, em seguida, para uma versão com rodas descobertas, especial para pistas de velocidade ainda mais elevada, como o circuito alemão de Nürburgring.
Impulsionado por um engenho de oito cilindros em linha, inclinado em ângulo de 53º à direita para baixar o centro de gravidade e reduzir a área frontal, o W 196 R propiciou ao argentino Juan Manuel Fangio dois de seus cinco títulos da Fórmula 1, em 1954 e 1955.
E foi a partir dessa máquina vencedora que Uhlenhaut criou o 300 SLR, que era, basicamente, um W196 R de dois lugares. Batizado internamente como W196 S, o bólido proporcionou à Mercedes a sua temporada de maior sucesso até aquele momento no Campeonato Mundial de Carros Esportivos, em 1955.
O inglês Stirling Moss completou em tempo recorde a lendária Mille Miglia (1.600 km), com percurso de ida e volta entre Brescia e Roma, levando a marca alemã ao título de construtores daquela temporada. Infelizmente, o W196 S também marcaria o pior dos dias para a fabricante da estrela de três pontas dentro das pistas, como descrito mais adiante.
No entanto, se por um lado os veículos abertos eram tão rápidos, qualquer aumento na velocidade também submetia os pilotos a maiores forças do vento. Diante desse dilema, Uhlenhaut imaginou que uma carroceria fechada adicionaria considerável conforto para os pilotos em corridas de longa distância.
E é neste ponto da história que o gênio da prancheta vem com uma ideia simples e engenhosa, para dar origem à sua obra-prima. Afinal, se o SLR 300 aberto já era rápido, com o arrasto aerodinâmico reduzido seria ainda mais.
Estava aberto o caminho para que Uhlenhaut criasse a sua “Mona Lisa”, materializada na versão coberta do modelo, o 300 SLR Coupé. Mantendo a base estrutural do W196 S, o novo Mercedes de corrida foi construído em torno de seu poderoso centro de força: um inédito motor de oito cilindros em linha, com bloco e cabeçote de liga leve, 2.982 cm³ de cilindrada, naturalmente aspirado, que gerava a potência de 302 cavalos a 7.500 rpm e o torque máximo de 32,3 kgf.m a 5.950 rpm – um absurdo para a época, especialmente por dispensar o turbo, já empregado nos carros de corrida àquela altura. A transmissão manual era de cinco marchas.
Com massa total de apenas 998 kg, o 300 SLR Uhlenhaut Coupé se privilegiava da relação de peso-potência de 3,3 kg/cv. Combinando essas características muito além do seu tempo às formas sedutoramente aerodinâmicas e ao excelente desempenho proporcionado por sua tecnologia de corrida, o cupê era capaz de alcançar os 290 km/h – praticamente, um Fórmula 1 da época com teto rígido.
O design do 300 SLR Uhlenhaut Coupé estabeleceu referências que o colocam entre os ícones automotivos mais significativos do mundo – especialmente por conta de suas distintas portas gullwing, inspiradas no SL 300.
Apenas dois protótipos do Mercedes-Benz 300 SLR Coupé foram produzidos, chamados “O Vermelho” e “O Azul”, fazendo referência às cores dos revestimentos interiores. Nascidos sob a promessa de se tornarem o melhor modelo de provas de longa distância de todos os tempos, ambos os exemplares do Uhlenhaut Coupé alcançaram o status de “o carro de corrida mais rápido a nunca competir”.
A razão é que, infelizmente, naquele ano de 1955 ocorreu a maior tragédia da história do automobilismo durante a 24 Horas de Le Mans, atingindo diretamente a marca da estrela de três pontas. O fato assombroso ocorreu logo na segunda hora da corrida, quando o Mercedes-Benz 300 SLR – aquele mesmo modelo W196 S que conquistaria o Mundial de Carros Esportivos -, conduzido pelo francês Pierre Levegh, colidiu contra a traseira do Austin-Healey 100 de Lance Macklin, que serviu de rampa para lançar o carro alemão sobre a área reservada ao público, lotada de espectadores.
Como resultado do choque e do incêndio que se seguiu, 84 pessoas perderam a vida, incluindo o próprio Levegh. A prova continuou, mas por volta da metade do percurso, a Mercedes tomou a decisão de recolher os outros dois 300 SLR, um deles pilotado por Fangio e Moss. Ao final da temporada, depois de conquistar mais duas vitórias além da Mille Miglia, todas com Moss, garantindo o título de construtores, a marca afastou-se do esporte a motor indefinidamente – medida que só foi revogada mais três décadas depois, em 1989.
De volta a 1955, o cancelamento de todo o programa de competições da Mercedes foi fatal para o futuro do 300 SLR Coupé. No entanto, apesar da ausência das corridas, o esportivo mais rápido de sua época não foi condenado ao silêncio.
Pelo contrário: Uhlenhaut teve autorização da fábrica para utilizar o “Azul” como o próprio carro de trabalho. E, ao longo desse período, diz-se que ele completou o trajeto de 220 quilômetros entre Stuttgart e Munique em cerca de uma hora. Como não havia radares naquele tempo e o engenheiro/piloto de testes sabia como ninguém extrair o máximo de sua criação, não por que duvidar.
A venda do 300 SLR Uhlenhaut Coupé “Vermelho” ocorreu no dia 5 de maio em um evento realizado no Museu Mercedes-Benz em cooperação com o renomado leiloeiro RM Sotheby’s. Os convidados estavam entre os clientes selecionados da marca alemã e colecionadores internacionais de carros e arte.
Os recursos conseguidos com a venda serão direcionados para o Fundo Mercedes-Benz, um programa global de bolsas de estudos que tem o propósito de financiar jovens estudantes comprometidos com um futuro mais sustentável e ações que apoiam o objetivo crítico de descarbonização e preservação de recursos.
“A decisão de vender um desses dois carros esportivos únicos foi tomada com um raciocínio muito sólido, para incentivar uma nova geração a seguir os passos inovadores de Rudolf Uhlenhaut e desenvolver novas tecnologias incríveis”, diz Ola Källenius, CEO do Mercedes-Benz Group AG. “Ao mesmo tempo, alcançar o preço mais alto já pago por um veículo é algo extraordinário: um Mercedes-Benz é, de longe, o carro mais valioso do mundo.”
Fonte: Mercedes-Benz Global I Edição: Fábio Ometto I Imagens: Divulgação